
Há alguns meses atrás, na cidade do Porto, fecharam-se no Teatro Rivoli dezenas de pessoas em protesto contra a privatização da gestão desse recinto, acusando o presidente da câmara, Rui Rio, de desprezar a cultura. O edil do Porto alegou que a câmara não podia financiar ou até mesmo sustentar todos os projectos ou infra-estruturas culturais, daí recorrer a privados. Num tom mais polémico, acrescentou ainda que não concordava que o dinheiro dos contribuintes fosse "alimentar" certas organizações culturais que promoviam espectáculos cuja audiência não chegava a uma centena de pessoas. Este ponto de vista, pertinente, é discutível. Terá o Estado, por mão das autarquias ou outras instituições públicas, obrigação de apoiar todos os eventos culturais desde os mais bizarros aos mais populares? Nos dias de hoje, qual o tipo de produção cultural merece ser subsidiada pelo Estado? Quem pode ser considerado um artista? Sendo Rui Rio presidente da câmara do Porto, tem todo o direito em aplicar a sua teoria. No seu ver, a cultura popular e os espectáculos que movem multidões adequam-se à sua política cultural para a cidade nortenha.
Dito isto, o que tem esta introdução a ver com o Art&manhas?
Durante o fim-de-semana, decorreu mais um Art&manhas, na Recreio dos Artistas. Organizado pelo Teatrinho, este evento cultural, que pretende fazer uma mostra de artes, recorrendo sobretudo a "artistas" locais, teve, no cômputo geral, uma adesão fraca tendo em conta a população de Angra, no entanto, do ponto de vista da organização, esta considerou-a satisfatória e fez um balanço positivo. Os factores divulgação, publicidade, ou cabeças-de-cartaz podem ter inviabilizado uma maior participação das pessoas e, consequentemente, o sucesso desta iniciativa. Caberá agora à organização tirar as suas ilações, pois se a divulgação da cultura é um dos objectivos principais do Art&manhas então os organizadores devem concordar que não foi alcançado. Para a sua concretização, o Art&manhas teve apoios financeiros de origem pública. Sendo a entrada livre e gratuita, não houve qualquer intenção em obter lucros monetários. Perante o voluntarismo de alguns e a boa vontade dos participantes, o dinheiro foi todo gasto na elaboração e produção dos diversos espectáculos que ali decorreram. Dito isto, valerá a pena continuar a patrocinar com dinheiro dos contribuintes açorianos eventos como este?
Do meu ponto de vista, sim. Mas com algumas objecções. Nos Açores, a iniciativa privada é fraca, fruto de uma cultura de risco pouco implementada e uma dependência do governo demasiado castradora. No domínio das artes, ainda é pior. A gestão cultural dos maiores recintos de espectáculos das cidades e vilas do arquipélago pertence às autarquias e ao governo. E isto é grave porque supõe que é o Estado que define o que é bom para a população em termos de cultura. O Estado deve facultar as infra-estruturas à população, recuperar e conservar o património histórico local e nacional, apostar na formação, mas não deve decidir o que a população merece ouvir e ver.
Não basta atribuir subsídios com base numas contas manhosas sobre o quanto se deve dar e com a respectiva assinatura do superior, a partir do gabinete. Algum representante dos dinheiros da cultura se deslocou ao Art&manhas para dar um incentivo moral aos jovens que se desdobram penosamente entre trabalho e família por acreditarem no que fazem? Que eu tenha conhecimento, não. Será que a Terceira, que se diz capital regional da cultura, tem assim tantos eventos que impeça um elemento da Direcção Regional da Cultura de comparecer à Recreio das Artistas, por falta de tempo? Podem alegar que não foram convidados, mas a porta esteve aberta a todos.
Mas estas dúvidas podem ser alargadas a todas as ilhas. A par do patrocínio, é preciso incentivar, "dar a mão" a organismos culturais independentes. Já que o Governo, pela mão do seu presidente, se "apoderou" da cultura nos Açores, deveria então criar a figura de produtor cultural. A sua função seria a de verificar
in loco se o dinheiro é bem aplicado, com a possibilidade de apresentar sugestões às organizações empreendedoras. Outra função atribuída seria a de ser aquilo que na gíria do futebol se chama por "olheiro". Ao descobrir alguém com talento em qualquer área artística, teria de encetar contactos e lhe fazer propostas para divulgar o seu trabalho; por outras palavras, fazer de mecenas público.
A cultura é um assunto muito sério que não está devidamente discutido entre a população e os agentes políticos. O Estado perde demasiado tempo em discutir quanto deve dar, em vez de discutir a quem o deve dar e com que contrapartidas. E esta é também uma questão de gestão de recursos, não humanos, mas de talentos.